
E a verdade é que a gente não lembra mais como fazíamos quando não havia celular.
Vamos puxar pela memória: marcávamos uma combinação qualquer (tipo: vamos nos encontrar em tal lugar a tal hora), e depois que saiu de casa, acabou. Lembrou? As pessoas ficavam simplesmente inacessíveis na rua. Várias combinações davam errado. Muito desencontro nessa vida.
Por outro lado, o desenvolvimento das telecomunicações acabou com diversos programas legais, como por exemplo, ir ao orelhão em frente à delegacia de Rio das Ostras, esperar horas numa fila para ter notícia dos parentes que ficaram no Rio de Janeiro. Saía a família toda, nós crianças íamos brincando pelo caminho, ouvindo a conversa dos adultos, das pessoas que estavam na nossa frente na fila, depois tomávamos sorvete, passeávamos na cidade, tudo com a simples desculpa de fazer uma ou duas ligações.
O celular mudou a vida das pessoas em muitas coisas. Podemos escrever um livro só sobre a mudança que o celular operou na esfera dos relacionamentos. A começar pelo bina. (Ih, é esse cara? Nem vou atender.)
Tem outra mudança de que me dei conta. Que é o seguinte. Antes do celular, você tinha muito mais contato com a vida familiar dos seus amigos. Exemplo. Início dos anos 90, eu era adolescente e morava com a minha mãe e mermã. Assim como todos os meus amigos. Não tinha e-mail. Então tudo era combinado pelo telefone. O fixo. A gente ligava, e às vezes atendia a mãe da pessoa, às vezes o pai, ou a/o irmã/o, ou a empregada. E se fosse alguém para quem você ligasse muito, acabava estabelecendo uma relação com toda essa família. Porque às vezes era preciso deixar recados extensos e importantíssimos com quem quer que estivesse em casa (tipo: bom, se ele ligar, diga que eu não pude esperar no lugar X, mas estarei no lugar Y até tal hora, depois vou para Z). Ou se você tivesse, digamos, um ex-namorado psycho que te ligasse o tempo todo, ele pelo menos estaria exposto ao vexame de posar de psycho para todo mundo da sua casa. Eu conheço razoavelmente bem os pais e os irmãos dos meus amigos mais antigos. Hoje em dia não. Crianças têm celulares desde os oito anos, e passam o dia mandando SMS umas para as outras. Ou e-mails. Ou scraps. Ou comentários nos blogs.
Os relacionamentos -- quaisquer que sejam, amizades ou namoros -- passaram a se dar numa esfera muito mais privada (ou muito mais pública, no caso dos scraps e dos blogs, mas de qualquer forma, sem passar pela mediação da esfera doméstica, apenas pela mediação dos pares).
Hoje em dia eu praticamente só tenho o celular das pessoas. De muitos bons amigos, nem tenho o fixo. Mas vou contar para o meu filho e netos que passei por toda a escola, incluindo vestibular, sem computador (internet nem fale), e toda a faculdade sem celular. Eles vão me ouvir, claro, com a mesma mistura de simpatia, curiosidade e uma certa pena com que eu sempre ouvi meus avós (ou mesmo meus pais) dizendo que para se fazer um interurbano você chamava a telefonista e a coisa demorava uma tarde inteira pra conseguir uma linha. Ou então aquela história que a TV só tinha programação durante poucas horas, e que nos horários em que não tinha nada ficava a imagem de um índio congelada na TV.
Tudo isso é, vá lá, normal. Mas a questão é mesmo o tempo. Como essas tecnologias deixam de ser nada e passam a ser tudo em menos de dez anos.
Tenho a impressão que este post já nasceu anacrônico.